Onde o amor pelo esporte encontra o olhar de mãe. Uma história nova a cada 15 dias.
No banco de trás da vida
O que será que cabe nesse espaço pequeno do nosso carro e nesse tempo de trajeto e movimento?
Flavia Cabral
8/18/20254 min read


Ele que nos leva, todos os dias
Meu dia começa antes do sol nascer. Às 5h30, enquanto me troco, já respondo mensagens de trabalho no Teams e e-mails, já que trabalho com pessoas do mundo todo, principalmente Europa e Ásia. Logo começo a preparar a casa para o dia: comida para cachorros e gatos, uma pequena arrumação e o ritual de acordar as crianças. Café da manhã (na airfryer) e coloco uma música para acompanhar — Nico adora falar que é sofisticado, parece um hotel. É o que dá o tom do dia.
E pronto, entramos no carro: eles vão para a escola, eu para a academia. Um café, um banho e o foco absoluto no trabalho, já que é de manhã que os fusos se cruzam e a mente precisa estar atenta.
Meio-dia, a concentração acaba. Vou para o carro de novo. Agora, é buscar os meninos na escola (muitas vezes enquanto estou em reunião) e, graças a Deus, o almoço é com os avós — um respiro que sustenta a rotina.
E, sem tempo nem para o café, começa a função de mãe de atletas: ginástica artística, balé, inglês, beisebol, xadrez, matemática e, agora, o basquete. Minha vida é uma constante viagem entre treinos e aulas, com lições de casa, relatórios, reuniões, conversas motivacionais e soluções de problemas — muitas vezes, tudo rolando ao mesmo tempo.
Nico, muitas vezes, faz a lição de casa ou os treinos de força, enquanto espera Olivia terminar as atividades dela. Porque, logo após, chega a hora do treino dele — todos os dias, menos sexta-feira — e não dá tempo de voltar para pegá-lo.


A leitura é feita no caminho, na espera, ali naquele espaço. Não sei como não enjoa.
Na maioria das vezes, ele pede minha ajuda — mesmo quando não consigo falar naquele momento — com perguntas que vão desde contas de matemática até levantamento de hipóteses para o projeto, como: “Quais os impactos sociais da falta de saneamento básico?” Às vezes peço para deixar para mais tarde, para poder explicar com calma a importância da água e, ao mesmo tempo, cumprir compromissos do trabalho — escrever relatórios, participar de reuniões ou responder mensagens importantes no Teams. Nesse espaço, entre o carro e o centro de treinamento, aprendo diariamente a equilibrar atenção, foco e presença.
Olivia, quando não está com os avós, ouve a música das Guerreiras, vê um desenho, brinca, inventa histórias, conversa ou adormece no banco de trás, exausta de um dia de “vai lá e volta”.
Nesse vai e vem, penso no quanto a maternidade está uberizada. Passamos tanto tempo no carro, entre atividades que eles resolvem que querem fazer, que me questiono: “será que estou sendo profissional o suficiente, sendo mãe o suficiente ou só estou tentando dar muita atenção para mil coisas ao mesmo tempo e fazendo tudo pela metade?”
Olho para o lado, vejo uma amiga do meu filho fazendo lição no carro, enquanto espera a irmã que treina junto com Olivia… Mando uma mensagem para outra amiga e pergunto: “como está a lição aí?” Ao que ela responde: “estamos no futebol e ele está fazendo aqui”. E nessa rede, vamos nos ajudando como podemos — com caronas, às vezes olhando os meninos para a outra ou com ideias… Como é complicada essa coisa de levar e buscar….
E, por vivermos tanto tempo em deslocamento, o carro também vira espaço para conversa. Às vezes, é a única chance que eles têm de desabafo. Ouço a história da amiga que fica imitando a minha pequena quando ela sai da escola. Ou o quanto o Nico quer melhorar nos esportes ou nas lições, ou se chateia quando fazem piadas com ele no momento que ele se senta no banco do passageiro após o treino. E eu cumpro o meu papel: ouço, dou conselhos, motivo — tudo ali com os olhos na estrada e a atenção dividida.


Eu e ela, ela e eu
Por fim, chegamos em casa para o jantar, banho e descanso. Mas meu dia ainda tem mais um turno: terminar as atividades de trabalho que ficaram pendentes. É nesse silêncio de casa, enquanto todos descansam, que consigo focar 100% e entregar meu trabalho com a qualidade que espero — aproveitando o privilégio de poder trabalhar em um lugar que não exige dedicação apenas nas 8 horas fixas do dia.
Será que eles vão lembrar das vezes em que ficaram esperando um pelo outro no carro? Das lições feitas com o caderno equilibrado no colo, do lápis que tropeça com o balanço da estrada? Será que vão reclamar da correria que é viver tentando ser mãe de atleta? Talvez não se lembrem do cansaço, da correria, do barulho dos e-mails pingando no celular, mas da companhia silenciosa, daquele tempo compartilhado — um pedaço de infância vivido em movimento, entre o agora e o depois, entre o vai e o fica.
Entre a lição e a arquibancada, a vida se escreve sem roteiro, mas cheia de presença e amor. E, um dia, eles talvez lembrem das tardes de companhias e cantorias e dos quilômetros que esse carro percorre para levá-los aonde eles sonham ser.
Mais Crônicas para Mães de Atleta
Contato
Você é mãe de atleta (de qualquer esporte) e quer compartilhar sua experiência? Mande sua história. Eu posso transformá-la em crônica ou publicar como depoimento.
Newsletter
© 2025. All rights reserved.
Apoio
Receba as crônicas no seu e-mail, na hora que são publicadas
Essas marcas acreditam no poder transformador do esporte para as crianças

