O beisebol que eles enxergam, mas quase ninguém vê

Às vezes achamos na cabeça de um menino de 10 anos, só tem vento. Mas a verdade é que tanto pensamento que a gente nem consegue acompanhar.

Flavia Cabral

6/16/20253 min read

Domingo, 8 de junho. Choveu a manhã toda. Daquelas chuvas que não dão trégua. O campo ficou pesado, a terra virou lama. Os meninos só conseguiram jogar depois do almoço. Era “só” um amistoso, no papel. Contra o Cooper A, o time mais forte da Liga. Mas, pra mim — que nunca jogou beisebol e até confunde bola com pão — foi quase uma aula sobre como as crianças, mesmo parecendo que só têm vento dentro da cabeça, enxergam o jogo de um jeito que a gente não vê.

Atibaia jogou bem, mesmo perdendo. Mas o mais curioso foi observar o que acontece quando o jogo escapa do previsível. Quando parece que eles tomam decisões que a gente, adulto, não entende — e talvez nem precise entender de imediato. Porque, às vezes, o que parece impulso é leitura. E o que parece sorte é estudo e treino acumulado em cada músculo, cada pensamento, cada reflexo.

Numa das jogadas, o jardineiro central pegou uma rebatida em fly ball (daquelas que vai lá no alto e cai quase reta) e lançou forte, tentando impedir uma corrida no home plate e fazer um double play (quando o time consegue eliminar dois corredores numa mesma jogada). No calor do lance, a bola saiu torta, muito forte e fora de linha. Nico, que estava de pitcher, percebeu: aquela bola não ia chegar do jeito certo no catcher. Antes que passasse do ponto, interceptou-a no ar e ajeitou a trajetória com precisão e velocidade. O catcher pegou limpo e… touch. O corredor, out — nehuma corrida anotada naquele lance.

Jogada feita. Na hora, eu só achei bonita. Mais uma jogada bem executada. Mas foi só depois que entendi o tanto que tinha ali: tempo de reação, leitura de jogo, confiança — não só em si mesmo, mas no que o jogo pede. Não sei se eu teria visto isso sozinha — como eu, de fato, não vi. Meu histórico no beisebol se resume a torcer e fingir que entendi o que aconteceu. Fui entender só depois, quando ele me explicou.

Pouco depois, outro lance. O jardineiro esquerdo pegou a bola e jogou para o Nico, que agora estava na terceira base. O corredor saiu da segunda, mas recuou e ficou preso no que chamamos de sanduíche (ou o famoso “bobinho” da escola), com dois defensores de um lado e de outro, e o corredor indo e voltando no meio. Nico jogou para o atleta da segunda base, o corredor voltou, o atleta devolveu a bola para o Nico — mas ela chegou um pouco tarde e o corredor passou. Nico virou para jogar pra alguém que deveria estar cobrindo a terceira. Mas não tinha ninguém. Ele correu e tentou o touch, mas escorregou na lama e não conseguiu. Corredor salvo; jogada não finalizada.

Nico, frustrado, devolveu a bola pro pitcher, visivelmente bravo. Eu, do lado de fora, fiquei sem entender. Por que tanta raiva por uma jogada que, pra mim, parecia só um avanço de base? Só no dia seguinte entendi. Fui conversar com ele sobre o comportamento em campo, chamando atenção para o quanto ele fica bravo, e percebi: ele enxerga o jogo com uma lógica própria, que talvez nem todos estejam acompanhando. A frustração não era pelo escorregão. Era por ter visto a jogada inteira desenhada na cabeça… e não conseguir concluí-la como sabia que podia.

Às vezes me pergunto se mais alguém percebe esse tipo de leitura que ele faz. Eu mesma só fui entender quando ele me contou o que se passou na cabeça dele. E aí descobri que o que o incomoda não é errar. É enxergar o tabuleiro inteiro e ficar sem a peça que falta pra concluir o jogo que ele sabe jogar.

Nico joga xadrez desde os cinco anos, quando se interessou pela aula dos mais velhos na escola. Talvez isso explique parte do que ele vê. Em campo, ele antecipa, observa, calcula. Move as peças. Só que o beisebol é caótico, menos previsível — e, talvez por isso, mais bonito também. Porque tem lama. Tem chuva. Tem sentimento. E tem os amigos.

Sem dúvida, eu nunca vou ver o jogo como o Nico vê. Talvez ele nunca consiga explicar tudo o que passa pela cabeça quando está em campo. E tudo bem. Eu fico aqui, aprendendo com ele — um inning de cada vez, uma conversa no dia seguinte após a outra.

Resta-me apenas cumprir meu papel como mãe: confiar no meu filho, mesmo quando eu não entendo. Ele vê o que a gente ainda não aprendeu a enxergar. E eu sigo torcendo para que, se mais alguém perceber, valorize esse jogo complexo que vive na cabeça dele — e que ele tanto ama jogar.

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