Onde o amor pelo esporte encontra o olhar de mãe. Uma história nova a cada 15 dias.
Quando o medo é real e a segunda chance é um presente
Uma trilha com meu filho me fez entender coisas importantes que passavam despercebidas no dia a dia
Flavia Cabral
8/4/20255 min read


Nico chega a cachoeira, depois de uma trilha de aproximadamente 4km
Naquela pausa em Ilhabela, que a gente fez para respirar um pouco depois de uns dias bem intensos, chamei o Nico para fazer uma trilha de quatro quilômetros até uma cachoeira no extremo sul da ilha. Eu já conhecia o caminho, tinha feito mais cedo correndo com minha cunhada, antes de as crianças acordarem, e sabia que não era fácil. O percurso, cheio de subidas e descidas bem íngremes, parecia até maior do que era. Mas eu sabia que ele tinha capacidade de completar o trajeto; tínhamos treinado a semana inteira juntos e eu tinha visto que ele estava bem preparado fisicamente.
Logo na primeira subida mais puxada, veio a explosão, de um lugar que eu não esperava, mas que, no fundo, eu já sentia que existia:
— Vocês sempre querem que eu seja o melhor em tudo. Estou cansado dessa subida. Quero voltar.
Parecia um grito guardado há muito tempo. E eu percebi na hora que aquele desabafo era mais sobre o beisebol do que sobre a subida. Eu paralisei. Tantas vezes a gente disse o contrário, tentou mostrar que o importante era o processo, a diversão, e não o resultado, os troféus ou passar na seletiva. Mas, de alguma forma, o que tinha ficado na cabeça dele era a cobrança — aquela pressão silenciosa para que cada arremesso, cada rebatida no beisebol fosse perfeita e que os resultados fossem sempre positivos.
Respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas, aquelas que a gente busca quando o coração aperta:
— Não, meu filho. A gente não quer que você seja sempre o melhor. A gente acredita em você, sim. Você é muito bom no que faz, você se dedica e treina muito. E consegue alcançar um patamar de muita qualidade. Mas o que a gente quer mesmo é que você seja feliz, que conquiste o que deseja, no seu tempo. Só isso. E essa dedicação que você tem, essa vontade de ir além, é o que te faz especial, não a perfeição.
— É, mãe. Mas eu não consegui passar na seletiva. Como não vou conseguir fazer essa caminhada, porque eu sou ruim.
Mais um respiro. Pensando agora, eu queria ter falado um monte de coisas que, na hora, não saíram. Poderia ter falado do quanto ele está crescendo, evoluindo, que é normal ter dificuldades aos 10 anos, mas nada me veio à mente. Eu só apontei o caminho e falei:
— Vamos em frente, porque a cachoeira vai valer a pena. Se a gente voltar agora, você nunca vai saber como ela é. Eu sei que cansa e dá vontade de parar, mas seguir mesmo cansado nos faz mais fortes, não só no beisebol, mas em qualquer lugar. Lembra do vídeo do Ichiro Suzuki que te mostrei?
Ele concordou e seguiu. Reclamou, parou algumas vezes, mas continuou. E fomos conversando sobre várias coisas: treinos, escola, desenhos… A cachoeira, quando apareceu, era pequena, mas linda. Envolvida na mata atlântica preservada, a água escorria pelas pedras, formando piscinas claras e rasas, e uma maior, um pouco mais funda e escura, com a queda maior ao fundo.


Ele foi e ficou orgulhoso de ter ido
Ele me olhou feliz e perguntou, com um tom que ia além da água, que vinha lá do fundo da alma:
— Que linda, mãe. Será que eu entro? Você quer que eu entre?
— Filho, você quem precisa decidir. É importante você sentir o que é melhor para você, o que te desafia e o que te faz bem.
— Você vai entrar?
— Não, eu odeio água gelada! Você quer entrar?
— Sim, mas estou com medo. Parece muito funda e não sei se encontrarei algum bicho, uma cobra.
— O medo é normal, filho. A coragem não é a ausência de medo, é ir em frente apesar dele. Se você quiser, pode deixar o medo de lado e entrar.
— Mas eu estou com medo.
— O medo é bom porque nos protege de fazer coisas que nos colocam em perigo, mas a gente precisa aprender a calcular os riscos quando queremos. E enfrentá-los quando achamos que conseguimos. Não acho que tenha cobra, dá para ver quase o fundo todo.
Ele tentou algumas vezes. Recuou. Molhou o cabelo, entrou até os joelhos, mas não conseguiu ir além. Voltava e perguntava:
— Tá bom pra você?
E eu falava sempre o mesmo, com a certeza de que a resposta estava nele:
— Se para você está bom, para mim está maravilhoso. Você que tem que saber.
Por fim, suspirou, com um ar de quem tinha chegado a uma conclusão importante:
— Pra mim tá bom. Vamos embora.
Concordei. Caminhamos de volta, conversando sobre a próxima trilha que poderíamos fazer. Quando faltavam alguns metros para chegar em casa, vimos o carro do meu marido. Ele vinha com a Olivia no banco de trás. Pararam. Olivia, toda animada, queria ir até a cachoeira. Mas, como ela tem apenas 4 anos, não conseguiria caminhar. Resolvemos que iríamos voltar de carro, e, como quem recebe um presente inesperado, voltamos todos juntos para a cachoeira.
Dessa vez, Olivia entrou no raso sem pensar, rindo da água que a encantava. Nico olhou para ela, deu um sorriso e foi também. Primeiro no raso. Depois, um pouco mais fundo, até onde a piscina maior começava a escurecer. Essa foi a segunda chance dele para se permitir ir além, no tempo dele, com a maturidade que só a experiência traz.
Os olhos dele brilhavam, os dois brincavam juntos naquela água gelada. O riso tinha voltado. Talvez porque a vida deu a ele uma segunda chance — e, no tempo dele, ele quis e enfrentou o medo que, antes, o tinha tirado dali. Ou talvez porque a brincadeira ajudou-o a encarar o fundo escuro, que antes parecia tão assustador.
E eu entendi e reconheci ali um aprendizado: a saúde mental das crianças é feita também dessas possibilidades. Do direito de tentar outra vez, de mudar de ideia, de dizer “para mim está bom” e, mais tarde, descobrir que ainda podia ir um pouco além. De reconhecer as limitações, ponderar e poder redefinir o momento do medo para conseguir superar e não paralisar.
No beisebol, a gente aprende que nem todo arremesso é um strike perfeito, nem toda rebatida é um home run. Mas o jogo continua. A vida, assim como o campo, sempre oferece uma nova oportunidade de mergulhar — com mais leveza, mais sabedoria e, principalmente, com a resiliência de quem sabe que cada jogada é um novo começo. E, assim, como na cachoeira, ele voltou aos treinos rotineiros — mais leve, mais dedicado e mais feliz, como fazia um tempo que eu não via.
Refleti que talvez existam vários caminhos que levam um atleta a ser bom. Tem aqueles que vão ter o talento nato e, de primeira, entrarão na cachoeira sem pensar. Mas para outros, como o Nico, talvez a força esteja justamente em entender que há novas chances e que a gente pode abraçar os desafios com cautela e com a força de quem busca a superação a cada dia. E é nessa busca diária, nesse esforço contínuo para ser um pouquinho melhor que ontem, que a gente encontra a verdadeira felicidade e o nosso próprio caminho para a excelência.
Nota da autora
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